sexta-feira, 30 de outubro de 2015

O calabouço da dieta, em uma vida de regras tristes.

Dentre as poucas certezas que tenho, uma em especial, insiste em se fortalecer. Incomoda, atrapalha, entristece...
Eis que nós nutricionistas somos grandes promotores dos transtornos alimentares. 

Essa minha certeza petulante não vem de graça, ela me traz algo complicado na pratica profissional: a consciência.

Pode parecer loucura, mas ter a consciência de que aquelas minhas palavras, as minhas explicações e qualquer indicação na prescrição, possam ser (de algum modo) estimulante de um transtorno alimentar é, para mim, uma grande tortura. Mesmo. 
Se esforçar ao máximo para que isso não aconteça é  mais do uma norma pessoal, é um objetivo da minha vida.

Costumo brincar que, ao prescrever uma dieta, eu tenho que pedir licença ao paciente. É como se eu estivesse entrando na sua casa, abrindo a geladeira, bisbilhotando a gaveta, sentando na sala e mudando o canal da tv. Me sinto verdadeiramente constrangida de fazer isso tudo sem pedir licença, sem explicar o que faço ali, e o motivo das minhas atitudes e escolhas. Afinal, aquilo que acordaremos em conjunto fará parte da sua rotina... Não era essa a ideia? Pois então, toda mudança demanda responsabilidade e respeito.

Quando passeamos pela vida temos, ao longo dessa jornada, objetivos variados, focos diferentes, intenções e aspirações que se modelam de acordo com o tempo e o espaço.... Priorizamos tantas coisas diferentes!  É o vestibular para uns, as provas finais para outros, a promoção em vista ou o curso fora do país... Tem vezes que é o casamento da noiva, a formatura do primeiro filho, ou a novidade de ser avó! É a primeira gestação, a segunda, a terceira... É o cuidado dos filhos, ou o dos pais idosos, ou o da própria felicidade. É a viagem... I almoco com a familia... O final de semana que está por vir...
Muitos são os focos, os motivos e os seus momentos. 
E aí, quando no meio disso tudo, se resolve seguir uma alimentação melhor, mais saudável, com boas orientações, é preciso lembrar que a vida irá continuar a ter todas as suas outras prioridade. Não irá se resumir apenas à dieta. Ela sozinha, não deve, não pode, não precisa, ser o foco de tudo. Será que notamos isso? Será aceitamos isso? Ou que estimulamos isso? 

Na orientação nutricional, temos (e o colega de área há de concordar) que dar bastante ênfase ao alimento, e na rotina que o abraça... Mas às vezes... Será que não perdemos a linha?

Para nós - ao menos para alguns de nós - é ok pensar nisso grande parte do tempo. E apesar de não sermos fiscais da alimentação, as regras, a rotina, os alimentos fazem parte do nosso trabalho, da nossa pratica diária, são ferramentas do dia a dia... Mas... Será que é bacana forçar isso na vida de quem tem tantos outros focos? 

Orientar é uma coisa. Mandar é outra. 
Compartilhar ciência é uma coisa. Ser taxativo é outra.
Prescrever dieta com o paciente é uma coisa. Restringi-lo a uma rotina que não lhe cabe é outra.

Ter que fazer dieta todos os dias cansa. 
Ter que pensar para comer sempre, o tempo todo, cansa muito. 
Ter que dizer não o tempo todo, cansa para além de muito.

A disciplina só é boa quando o seu limite é a felicidade.
Quando passamos deste limite, a disciplina é um calabouço. Daqueles bem profundos em que a culpa e os comportamentos compulsivos são mais fortes que o próprio benefício da "dieta saudável". 

Tomara que, a cada dia que passe, os colegas de área notem isso. E que, desta consciência, venham melhores condutas. Menos duras. Mais abertas e mais realistas. 

Tomara que, desta consciência, venham explicações mais coerentes e mais respeito ao paciente. E que eles (sobretudo elas) diminuam a culpa, sorriam mais, e conheçam uma nutrição com alma, que aceita a vida com seus prazeres (até mesmo os alimentares!). 

Tomara que essa seja uma nova certeza para mim. Que não incomode, não atrapalha nem entristece... Pois, a despeito de qualquer objetivo, no final de tudo, o foco é mesmo ser feliz. 



quarta-feira, 21 de outubro de 2015

Toda expectativa em pilares de areia tente a desmoronar.

Queria entender melhor esse modo mecanicista de interpretar o corpo.
O peso.
O objetivo.
As necessidades.

Queria entender melhor o motivo de tanta angústia pelos números da balança.
Pelo calculo do IMC.
Pelo X exato de quilos perdidos.
Pelas "broncas" dos profissionais aos pacientes, quando os valores-de-perda não são atingidos.

Corpo é bicho.
E a natureza é muito maior do que a sua mera previsibilidade. 
Metabolismo não responde simplesmente ao por e tirar de energia...Não se resume a isso, e tão pouco, depende apenas disso.

Não se prevê um resultado biologico como se prevê a resposta de uma máquina. 
Desvio padrão, variáveis e pontos fora da curva são, na natureza, a mais pura realidade.
Por que será então que queremos tanto os resultados exatos? 
Quem (ou o que) nos ensinou essa expectativa?

No meu ponto de vista, toda espectativa em pilares de areia tente a desmoronar. 
Por que criar expectativas fazias? Por que enraizar na areia, se já está sujeito ao insucesso?

Sabe o que gera isso tudo?
Uma ansiedade sem precedentes.
Uma tristeza profunda.
Compulsão daqueles que vivem neste espectro. 
Auto estima severamente reduzida.

E a vida é tão curta... Não é mesmo?

Do lado de cá da mesa do consultório, escuto tanto sobre isso... Noto tantos impactos desse pensamento reducionista. 

Será que o médico, que diz a uma jovem de 30 anos, que - segundo seus cálculos - se encontra 5kg a cima do "seu peso" ideal, sabe da ansiedade que ele lhe causa ao prescrever sibutramina para que ela emagreça antes de engravidar? 
Sera que ele entende que, talvez, brigar com ela pelo "brusco ganho de peso", pode lhe fazer mais mal do que o ganho em si? Será que sabe que ela está querendo mesmo engravidar (que já foi conversado com o esposo, programado, que isso a deixa feliz, a motiva...) e talvez não seria muito bacana se acontecesse e ela estivesse de fato tomando a sibutramina? Será que ele sabe que, às vezes, perder peso rapidamente para engravidar em seguida pode ser pior do que engravidar e controlar o ganho durante a gestação? Será que ele sabe quanta cor ele tirou da vida dela após a consulta?
Será que a médica que pede a seu paciente de 55 anos para emagrecer "só 6 quilinhos", com uma "dietinha" é um "remedinho" sabe do impacto que isso pode ter na vida dele? Que talvez, se ele tivesse uma orientação coerente, ele nem precisaria de remédio para isso? Ou até, que o bom resultado na vida dele não depende dos "6 quilinhos", mas da qualidade do corpo que ele vive dentro? 

Será que o personal trainer, que pede ao seu aluno de 42 anos, um esforço extremo, a ponto de precisar parar o treino para vomitar 2 vezes, sabe do prejuízo na vida dele que está causando? Será que ele sabe que nosso corpo foi feito para o movimento, mas que o esforço é metabolicamente lido como stress? Será que ele sabe do comportamento que acaba (mesmo que "sem querer") induzindo? Será que ele considera o bem estar como objetivo principal da sua conduta? 

Será que o colega nutricionista notando mal que faz quando prescreve a um mocinho de 18 anos, a uma recem-mamãe e a um senhor de meia idade, uma mesma dieta, baseadanos mesmos suplementos alimentares? Será que considera a sobrecarga que causa? Mais ainda, será que ele nota a irresponsabilidade profissional que pratica? A má impressão que causa da nossa classe? Será que ele percebe que o resultado principal não é lido em quilos na balança, tão pouco em centímetros de bíceps, mas na viabilidade da sua conduta? Na pratica e na adesão? No bem estar daquele que vos confia o ajuste da sua alimentação? Será que este colega sabe que o consumo alimentar é muito mais do a mera nutrição? 

Será que aquele grupo de mulheres, reunidas para um café sabem do mal que fazem às suas semelhantes quando os julgamentos são presos aos seus corpos? Será que sabem da dor que causam quando os comentários alheios diminuem a mulher a sua aparência estética? Será que os homens sabem disso? Será que os jovens sabem desse mal? Será que notamos a influência disso na nossa vida?

Será que as mamães e os papais sabem que, ao cobrar um "corpo magro" de seus filhos pode prejudicar a real construção desse novo corpo? Será que sabem que o exemplo é mais valioso do que a cobrança? Será que ensinar a importância de outros valores não ajudaria mais do que impor a "necessidade" objetiva do corpo? A melhora da saúde e a qualidade nutricional são, sem dúvidas, indispensáveis à todos, que dirá a uma criança... Mas será que lemos esse resultados puramente em um corpo mais esguio?

Pois então, como já disse, no meu ponto de vista, toda espectativa em pilares de areia tente a desmoronar. 

Corpo é bicho, não responde como máquina. Expectativas frustadas atrapalham a vida, tiram dela cores, sabores e memórias. Prejudicam, ao invés de estimular.

Queria mesmo entender esse modo mecanicista de interpretar o corpo...